Blog Dentro da Cena

BENS INTERIORES E BENS CAPITAIS

Reflexões sobre valores e lugares que compõem nosso imaginário

Por Adriana Amorim

A descoberta do imaginário é uma contradição. É como nos darmos conta de que estamos vivos, depois de tanto tempo que já estamos, sem sequer termo pensado nisso. É similar ao que nos dizem os mais velhos: “desde que me entendo por gente”. Gente, sempre fomos, mas nos entendermos como tal requer consciência, um olhar deliberado para a condição de que se trata.

Esta compreensão intelectual de si e do imaginário parte, via de regra, da relação com o outro, porque o imaginário é, sobretudo, social, coletivo. E este outro se configura no meu próximo, em sentido lato, aquele que divide comigo experiências e lugares reais e pragmáticos: amigos, familiares, colegas, afetos e desafetos. Mas configura-se também nos parceiros distantes em tempo e lugar, como nossos amigos filósofos, sociólogos e, sobretudo, artistas, estes parceiros de sempre, estes anjos-fantasmas que nos acompanham todo o tempo – tempo cronológico e tempo subjetivo.

Na estrada asfaltada margeada de mato verde ou terra seca, indo ou voltando, sempre haverá vestígios de um imaginário que se altera, que se dilata ou se comprime, de reflexões sobre distanciamentos e aproximações dos valores que norteiam a vida na capital e a vida no interior. Bens interiores, bens capitais; vivências de interior, vivências de capital. Conceitos que se opõem, medidas que se alteram, olhares que se desviam. Esses dois lugares, aparentemente antagônicos, se completam em suas construções recíprocas.

Valores semânticos de interior e de capital

“No meu interior é assim…” Sempre houve uma poesia possível quando usamos o termo interior. Meu interior, porque sou dele e ao mesmo tempo porque ele é meu; porque, sobretudo, foi de lá que eu vim. A noção de pertencimento confunde-se: meu interior enquanto lugar de individualidade, intimidade, imaginário, em relação dialética com o interior que é espaço físico (social, concreto, geográfico) e metafísico (subjetividade de um coletivo cultural que me constitui e me identifica como sendo desta ou daquela região, através de costumes, sotaques, maneiras de vestir, valores…).

A palavra capital, por sua vez, remete imediatamente a dinheiro. Substantivo masculino, o capital. (Não deve ser à toa, e não sei precisar o que veio primeiro, que o centro administrativo de uma determinada região também se chame, em tempos de capitalismo avassalador, capital). Já com função adjetiva, capital designa algo principal, essencial, fundamental.

A compreensão política e econômica dos termos opõe interior e capital, o primeiro constituído pelos municípios que compõem o Estado, cada qual com suas estruturas políticas e sociais próprias, e o segundo como centro administrativo, econômica e cultural (num sentido extremamente restrito e constrangedoramente hegemônico da palavra cultura).

Valores reais da experiência

É na capital que muitos de nós acreditamos estarem as melhores oportunidades de vida, de sucesso, de sobrevivência. Esta relação tem povoado o imaginário de muitas gerações e tem redefinido mapas, interferido na geografia, alterado dados demográficos e, sobretudo, construído novas noções de identidade.

Quando saímos de um lugar para outro, saímos de nós mesmos em busca de uma nova possibilidade de garantirmos a fidelidade de nossa identidade. “Por vezes, é estando fora de si que o ser experimenta consistências. Por vezes também, ele está, poderíamos dizer, encerrado no exterior”, como escreveu o filósofo Gaston Bachelard.

Herança de nossos ancestrais nômades, questões de ordem prática, imposições da cultura contemporânea do sucesso, necessidades materiais de sobrevivência, quaisquer que sejam as motivações e interferências que nos impulsionam a sairmos de um lugar para outro, esta partida descreve sempre uma tentativa de buscarmos a nós mesmos, um novo eu, que não se configurou naquele espaço, naquele momento, e que nos faz falta. Quem migra, conhece o eterno confronto entre ficar e voltar, entre o de lá e o daqui, entre o de ontem, o de hoje e o dos possíveis amanhãs.

O mito do sucesso capital e a concretude da vida interior

O mito de sucesso – sobretudo profissional – não tem mais nos satisfeito a todos. Seja porque não o conquistamos nunca, já que seu conceito não se define e está sempre atrelado ao futuro, a um porvir. Ou porque imaginamos que o conquistamos e depois dele o vazio nos preenche, ou o peso de nos mantermos na corda bamba que ele representa. Ou ainda porque, em ele existindo de fato, quando o alcançamos imediatamente projetamos um novo lugar a alcançar, e a satisfação parece ser sempre uma promessa, nunca uma vivência.

Michel Maffesoli propõe que “o concreto, o quotidiano, a vida banal (…), que foram amplamente tornadas menores, senão desvalorizadas durante toda a modernidade, invertem-se em seu contrário. Ou, mais exatamente, dão origem àquilo de que são portadores. O espiritual surge do material”.

Quando nos reportamos à vida no interior – para o bem e para o mal – falamos de coisas prosaicas, concretas. A concretude de felicidades palpáveis:  um balanço no quintal para o filho, espaço para andar de bicicleta, secar roupas ao sol, árvores nas calçadas, um passeio na rua, ir à casa do outro sem avisar, tomar coisas emprestadas, domingos de intermináveis almoços familiares.

A felicidade que se promete nas grandes capitais é menos concreta e mais prospectiva. A promessa de ir a grandes teatros, cinemas, show e museus – possibilidades repletas de pré-requisitos e riscos; a falta de tempo e de espaço; o trânsito caótico e o dia se esvaindo em engarrafamentos; a violência crescente; o risco de pane em serviços essenciais. A extrema escravidão a tudo o que construímos para nos amparar.

Obviamente, os aspectos de uma realidade podem perfeitamente dar-se no contexto oposto. Também sente-se medo no interior; também se constroem laços na capital. O que aqui menciono diz respeito às recorrências, ao que parece configurar o estilo deste ou daquele modo de vida.

Poética das “remigrações”: a distância do céu

O contrário do êxodo, a volta para casa, a retomada das origens: “remigrações”.

Questões que inquietam: como nasce o desejo da remigração? Em que condições ele emerge?

A consciência de que muitas angústias podem ser reflexos desse banzo que não cessa. O medo de deixar algo que no fundo nunca possuímos para além da promessa de um dia possuir. O embate com o preconceito de que a vida interior é inferior à vida na capital, segundo critérios que a cada dia ficam mais obscuros.

De novo, Maffesoli: imagem é conceito. Uma das imagens que para mim parecem conter em si as contradições e as metáforas da vida no interior e na capital é a distância do céu. Se, na capital, o céu é comprimido em extensão e afastado de nós por arranha-céus que o sustentam lá em cima, como uma distante janela azul por onde alguém nos vigia, ou desistiu de nos observar, no interior o céu é vasto para qualquer lado. E é baixinho, pertinho de nós, quase possível de tocar. A linha do horizonte parece grande e contínua na terra que é nosso próprio dentro, nosso interior. Enquanto isso, nas capitais (e no capital) o horizonte fragmenta-se em pedaços que não parecem mais nos conduzir ao infinito, não parecem mais nos conduzir a lugar algum.